domingo, 31 de março de 2013

Público de 30/03/2013 de José Manuel Fernandes

O espectáculo de Sócrates é mais próprio de um circo do que de uma ágora, e a sua mensagem política falha o essencial
O mundo não é um estúdio de televisão. Portugal também não. Felizmente. Mas José Sócrates parece não o ter ainda descoberto. Por isso quarta-feira, o dia do seu anunciado regresso, foi também um dia revelador. Porque, para quem tivesse dúvidas, ficou claro que ao antigo primeiro-ministro se aplica como uma luva o comentário que Napoleão fez sobre os Bourbons: "Não esqueceram nada e não aprenderam nada."
Talvez não fosse preciso dizer mais nada. O político combativo, o "animal feroz", voltou para nos recordar como nunca é capaz de admitir que errou ou de perdoar. Também nos recordou como se pode ser malcriado e arrogante, como se constrói todo um discurso baseado num permanente extremar de posições, na constante instrumentalização dos números e na redução da realidade a um retrato a preto e branco em que o próprio é a única referência e a única preocupação.
Habilidoso neste tipo de exercício, eficaz a impor os seus temas e a sua agenda, alimenta a convicção de que pode bater todos aos pontos quando, na verdade, o que faz é criar um deserto à sua volta, um deserto onde só sobrevivem os seus fiéis. Como espectáculo é mais próprio de um circo do que de uma ágora, mas há quem goste. Agora como mensagem política falha o essencial.
Ancorado no passado, sem nada de novo para dizer, centrado na sua "narrativa" e nas suas obsessões com "embustes" e ajustes de contas, apenas ofereceu como alternativa, ou como visão, um sonoro "parem com a austeridade". Não foi apenas pouco, foi patético: por muito que nos custe a austeridade, ou que Gaspar nos faça pele de galinha, sabemos que recusá-la é uma ilusão. Só Sócrates parece ainda achar que o mundo era perfeito, e o seu Governo excelso, até um banco falir. Já ninguém acredita nisso.
Os Bourbons, quando regressaram a Paris depois do fim do Império napoleónico, acreditaram poder regressar à "doçura de viver" do Antigo Regime. Sócrates, que veio de Paris, não ambicionaria tanto, mas julgou poder reviver o passado e, sobretudo, reescrevê-lo. Mas o país que encontrou é outro. É um país, no mínimo, mais céptico e menos propenso a embarcar no tipo de ilusionismo em que é especialista. Já não encontra quem lhe compre auto-estradas, aeroportos e cheques-bebé, como em 2009.
Sócrates é daqueles que acredita que pode mudar a realidade como quem muda o cenário num estúdio de televisão. Mais: que o pode fazer através do discurso e daquilo a que chama "acção política". Trata-se de um voluntarismo duplamente perigoso. Primeiro, porque muitas vezes mascara a realidade, e fá-lo de forma deliberada. Em nome da criação de "expectativas positivas", falsifica o real no limite da mitomania: o mundo de Sócrates é um mundo que ele mesmo criou, mas em que acredita ao ponto de achar que esse mundo de fantasia é o verdadeiro. Depois, este esforço de modelação da realidade conduz também ao autoritarismo, um das marcas do seu consulado, pois não aceita contraditório.
Ora se o Portugal de hoje já não é o país imaginário das várias "narrativas" do "sucesso", da "competitividade" e da "modernidade", antes um país confrontado com o duro dia-a-dia de estar a pagar a conta de muitos desvarios, a verdade é que o distanciamento face ao discurso irreal não corresponde ainda a uma compreensão plena dos desafios que temos pela frente.
Há quatro realidades muito duras que ainda não digerimos por completo. A primeira é que o país foi de facto à bancarrota. Há quem o tenha dito alto na última semana (Daniel Bessa, Pedro Soares dos Santos), só que poucos o assumem. Tecnicamente, é verdade, o país nunca falhou os seus pagamentos, mas isso é uma ilusão: apenas não o fizemos porque o Estado (no tempo de Sócrates) começou por obrigar a banca portuguesa a financiá-lo e, depois, chamou a troika. Sem isso estaríamos insolventes.
A segunda é que, para evitar a bancarrota formal (que nenhum PEC4 contornaria, diga-se de passagem), tivemos de aceitar ser um país "de programa", a mesma coisa é dizer, um país de soberania limitada. O dinheiro só chega se passarmos nos exames trimestrais, algo que tende a ser esquecido. Tão esquecido que o próximo cheque da troika pode ser atrasado por estarmos atrasados no plano de cortes na despesa pública. Já alguém pensou nas consequências de esse cheque eventualmente não chegar?
A terceira realidade que nos atormenta é a da dimensão da dívida e o tempo que levaremos a fazê-la regressar a níveis comportáveis. Só para recordar os mais esquecidos: de 2005 a meados de 2011 a dívida passou de 90 para quase 170 mil milhões de euros (passou entretanto os 200 mil milhões) e agora vai ter de baixar para o equivalente a 100 mil milhões. É uma geração de austeridade. É um preço enorme a pagar.
A quarta e última realidade é que não vai ser possível levar este barco a bom porto no actual clima de confrontação política, de que a moção de censura do PS é apenas uma manifestação infeliz e, de certo modo, cobarde. Também não creio que possamos confiar num hipotético "pacto de regime" como o sugerido pelo governador do Banco de Portugal: não poderíamos ter um melhor pacto do que PS, PSD e CDS terem assinado o memorando da troika, mas viu-se o tempo que esse consenso sobreviveu. Em Portugal, com a nossa cultura política, a única solução que compromete os partidos é a partilha directa do poder. Previ-o e defendi-o ainda antes das últimas eleições, vejo agora mais gente a concordar. Não sei é se vamos a tempo e muito menos sei como chegar a um governo de base mais alargada sem ter pelo meio uma crise que deite borda fora o que já alcançámos.
E ainda há o problema Europa.
Voltou a estar na moda falar de guerra na Europa. Uns falam dos seus fantasmas, outros evocam 1913, o ano antes da grande tempestade, há até quem receie que algum tresloucado da Europa do Sul se lembre de reeditar um atentado, desta vez contra um ministro da Europa do Norte. Não estou, confesso, demasiado inquieto, mas por uma razão bem prosaica: quase já não há, na Europa, exércitos dignos desse nome. Para já e por agora essa é a nossa principal garantia de que isto não acaba muito depressa e muito mal.
A falta de militares em armas tem sido compensada pela abundância de plumitivos de espírito bélico. Vivemos numa espécie de nova irracionalidade, em que tudo e qualquer coisa passou a ser culpa, sempre e só, da Alemanha e da chanceler Merkel. Voltámos a vê-lo no caso de Chipre: ainda antes de sabermos o que se tinha passado na famosa reunião do Eurogrupo que decidiu a primeira fórmula do resgate, mesmo quando se multiplicavam as versões contraditórias, o único consenso estabelecido foi que o malvado era o ministro Schäuble.
Junto a esta nova irracionalidade vem a retórica incendiária. É só uma questão de escolher o insulto preferido: "huno", "teutão", "fascista", "neonazi", "Hitler de saias" ou o que mais vier à cabeça. Tudo serve para descrever a Alemanha e os seus líderes. Mesmo pessoas sensatas e inteligentes, como Viriato Soromenho Marques, comparam, no plano moral, o resgate a Chipre à chacina dos judeus, como se aquilo que acabou por acontecer - a falência de dois bancos que foram mal geridos - não devesse ser a regra e não a excepção.
Sobram pois os sinais de que o debate europeu se deslocou da realidade e foi substituído pelo preconceito. O que nos obriga a procurar algum realismo. Um bom começo encontrei-o esta semana nas páginas do mais europeísta dos jornais europeus, o Financial Times, onde três dos seus principais colunistas - Martin Wolf, Gideon Rachman e Wolfgang Münchau - pareceram convergir num ponto: não há nem haverá forma de fazer funcionar bem uma união monetária que agrega países com culturas económicas tão diferentes como a Alemanha, a Holanda e a Finlândia, de um lado, e Portugal, a Grécia e o Chipre, do outro. Sendo assim, aquilo que lhes agradeceríamos era que nos começassem a ajudar a encontrar forma de sair do imbróglio em que os "líderes visionários" de há duas décadas nos enfiaram. E que o fizessem antes de alguma coisa de mais grave acontecer.




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